Foi com enorme alegria que aceitei o convite do Maestro e Organista, Filipe Veríssimo para escrever um texto para aparecer, com outros textos, na publicidade do Grande Festival de Órgão de Tubos de Tubos e Música Sacra que terá lugar, a partir de 30 de Setembro do ano corrente, na cidade do Porto e nos concelhos da Maia, Gondomar e Valongo. A razão dessa pessoal e profunda satisfação de tal evento é devida, concerteza, por um lado, à minha paixão pelas causas da Música Sacra e do Órgão de Tubos, durante perto de 50 anos, e por outro, verificar que há uma pessoa, com uma paixão igual à minha, que arranca com um Festival Internacional de Órgão de Tubos e Música Sacra: Filipe Veríssimo, Mestre Capela da Igreja da Lapa.
Com toda a força do meu coração, louvo, com profunda admiração e gratidão, as vivas e eloquentes manifestações de júbilo e de apoio a tal evento, por parte de Sua Eminência, o Senhor Cardeal Gianfranco Ravasi, Presidente do Conselho Pontifício de Cultura, com sede em Roma, de Sua Excelência Reverendíssima, o Senhor Bispo do Porto, D. Manuel Linda assim como dos Excelentíssimos presidentes das Câmaras de Porto, Maia, Gondomar e Valongo.
Creio ser do conhecimento dos admiradores do Órgão de Tubos que Deus tivesse permitido que a minha pessoa tenha promovido, com a palavra e acção, a cultura do Órgão de Tubos, instrumento próprio e adequado à liturgia cristã. Pertence à cultura cristã e mesmo civil o desenvolvimento do conceito de Órgão de Tubos desde a sua criação (Órgão de Tubos hidráulico, por Ctesíbio de Alexandria, ano 280 A.C.). Este instrumento fazia parte dos chamados instrumentos profanos. Sabe-se que o instrumento inventado tinha um som agressivo e gritante.
O Cristianismo abriu as portas ao Órgão de Tubos depois da Idade Média. Duas questões se colocavam à Igreja: por um lado o instrumento de Ctesíbio com seus sons gritantes fazia parte da orquestra que no Circo romano acompanhava a perseguição e morte dos cristãos. Este dado histórico levou a que, durante séculos, os Padres da Igreja não aceitassem o Órgão de Tubos porque para além da questão histórica (o Órgão de Tubos de Ctesíbio conotado com as referidas perseguições), queriam que houvesse uma purificação e autenticidade dos seus sons. Foi o Concílio de Trento, no séc. XVI, que oficialmente aceitou o Órgão de Tubos como instrumento da Igreja que iria iluminar e aquecer os corações e as almas de milhões de fiéis (igreja católica e luterana). Diga-se, ainda, que o Órgão de Tubos descreveu o seu caminho ao lado e a par dos carrilhões de sinos das torres das igrejas de todo o mundo.
Na Idade Média, o Órgão de Tubos foi-se despindo progressivamente da agressividade do seu nascimento, para ter como referência a voz humana (o aparelho fonador) o que permite poder ser adjectivado como parente do ser humano. As celebrações das verdades da Fé têm sempre um denominador comum: serenidade, suavidade, calor, justiça, paz, júbilo e desassombro. Eis porque as casas que fabricam Órgão de Tubos não são chamadas fábricas mas oficinas. Eis porque os organeiros têm a consciência, ainda hoje, de ao confiar-se-lhes um Órgão de Tubos para uma igreja irão construir um instrumento que aponta para Deus e para a santidade dos fiéis, seguindo assim por um caminho paralelo ao canto gregoriano. O Órgão de Tubos vive da espiritualidade e tenta fomentar um ambiente e contexto de transcendência e espiritualidade.
Entretanto, o Órgão de Tubos é também um instrumento cósmico porque nas celebrações cristãs o cosmos está presente. Assim, para a construção do Órgão de Tubos de Tubos são chamados os três reinos da natureza: mineral, vegetal e animal. É do reino mineral que brotam, mediante o trabalho do organeiro, os tubos de estanho, de bronze ou de prata; do reino vegetal brotam os tubos de madeira e as caixas de ressonância; do reino animal brotam as teclas de marfim e as peles dos foles (quais pulmões) que insuflam o ar em todos os tubos por sistema mecânico, no passado ou electrónico, hoje. Esta é a grande orquestra que o organista dirige e faz funcionar. O organista, representante da humanidade a quem foi dada a missão de dominar a terra. Foi por tudo isto que o grande e inesquecível compositor de música sacra, e não só, W. A. Mozart (1756-1791) sagra o Órgão de Tubos como Rei dos instrumentos.
Walter Scheel que foi presidente da República da Alemanha (1974-1979) e presidente do Comité do Ano Europeu da Música (1985) em homenagem a J. S. Bach que nasceu em 1685, presidiu ao Congresso Internacional de Música Sacra em Roma, no ano de 1985, no Auditório Paulo VI, em sintonia com o Ano Europeu da Música. Estive presente nesse Congresso. Perante vários cardeais e centenas de responsáveis de música sacra de países de todo o mundo, no encerramento desse Congresso, pronunciou com solenidade a seguinte recomendação: peço à Igreja católica que não esqueça, mas que respeite e promova duas pérolas que ela legou à Europa, o Órgão de Tubos e o Canto Gregoriano. Diga-se de passagem que Walter Scheel era conhecido como pessoa muito culta e agnóstico. Pertencia ao Partido Liberal Alemão.
Depois da aceitação oficial do Órgão de Tubos pelo Concílio de Trento (séc XVI), entra-se numa fase que poderíamos considerar de veneração do rei dos instrumentos. A partir do século XVII, as artes da talha, da pintura, da escultura e figurativas, deram o coração e as mãos, para embelezar as fachadas do rei dos instrumentos. Imagens de Anjos, de Nossa Senhora, de Santos e até da Santíssima Trindade, assim como de trombetas e outros instrumentos antigos, enchem os olhos e tocam o coração daqueles que contemplam essas fachadas, muitas vezes, sumptuosíssimas. A Alemanha e os Países Baixos quiseram ser o berço dessas maravilhas. Na Alemanha, os anais da construção de igrejas contam-nos que os arquitectos, quando aceitavam construir uma igreja, pensavam e meditavam, em primeiro lugar: na capela-mor, o Altar e no Coro alto, o Órgão de Tubos. E depois… o resto.
Tudo o que foi escrito foi, concerteza, a alavanca de que os nossos antepassados se serviram para nos deixarem o extraordinário legado de 46 Órgão de Tubos, só na cidade do Porto e de 17 Órgão de Tubos nos concelhos de Gaia, Gondomar, Maia, Matosinhos e Valongo. Em Portugal, é com orgulho que referimos os seis Órgãos de Tubos da basílica do Palácio Nacional de Mafra (caso único no Mundo!) e o carrilhão com 142 sinos colocado nas duas torres da referida basílica, considerado o segundo maior do Mundo.Uma maravilha que devemos a D. João V, grande impulsionador da Música. No Porto, podemos admirar as fachadas dos dois Órgãos de Tubos da capela-mor da Sé Catedral, as fachadas notáveis dos Órgãos de Tubos da igreja de S. Bento da Vitória, de Santa Maria da Vitória, Dos Grilos, dos dois Órgãos de Tubos dos Clérigos e, igualmente, dos dois Órgãos de Tubos de Santa Clara, etc. A título de curiosidade, desejo referir que na Capela do cemitério de Agramonte, há um Órgão de Tubos. No primeiros anos do séc XVIII, foram enviados de Hamburgo para Portugal, 3 Órgãos de Tubos da célebre Oficina Arp Schnitger. Um deles está na igreja de Moreira da Maia: belíssimas as suas sonoridades e belíssima a sua fachada. Outro que terá acompanhado D. João VI na sua ida para o Brasil, está na Catedral de Mariana (Brasil). O terceiro teria sido vítima de um incêndio. Outra curiosidade: na Igreja do Bonfim, Porto, há, aparentemente, um Órgão de Tubos enigmático. Com efeito, dentro da caixa do referido Órgão de Tubos não há um, há dois. Esses dois Órgãos de Tubos pertenciam ao Convento de Avé Maria, no local onde foi construída a estação de S. Bento. Naturalmente, o organeiro, ou pseudo-organeiro que terá acompanhado as vicissitudes dessa mudança, não tinha capacidade para resolver a situação. Segundo a opinião do grande organeiro Georg Jann a quem Portugal muito deve, o Órgão de Tubos do Bonfim é um enigma.
Os nossos antepassados estão na eternidade, creio eu, à espera de que nós, para quem foram pensados e zelados tão preciosos instrumentos, sejamos gratos por tal legado e sigamos as suas peugadas.
Não seria correcto omitir uma referência aos Órgãos de Tubos modernos, existentes na cidade do Porto, Valongo e na Maia. Apontamos as belas fachadas dos Órgãos da Sé Catedral, da igreja da Lapa, da igreja da Senhora da Conceição, da Igreja nova de Cedofeita, da Igreja do Foco (Boavista, neo-ibérico), da igreja de Santa Rita, Ermesinde, e da igreja de Nossa Senhora da Maia. Os respectivos organeiros vieram da Alemanha, da Suíça, da França e da Espanha.
Vamos arrancar com o grande Festival do Órgão de Tubos e Música Sacra, com alegria, entusiasmo, Esperança e Fé. Ele não será um acontecimento qualquer. Se, por um lado, ele a muitos irá proporcionar momentos inesquecíveis da Arte musical para Órgão e música Coral: Buxtehude, Bach, Mozart, César Franck, Max Reger, Messiaen, Rodrigues Coelho, etc.. por outro, ele não fica por aí. Todos e todas, aqueles e aquelas que vierem a envolver-se nele, directa ou indirectamente, ouvirão uma mensagem. Qual será essa mensagem? Penso que o Festival de Órgão e Música Sacra é uma distribuição de cultura, de beleza e espiritualidade, mas sobretudo, uma sementeira. Que vem ele semear?
Ouso responder. A semente que ele vem espalhar sobre nós é: descobrir a beleza da música de Órgão e de Coro, fomentaros cursos de Órgão das Escolas de Música e tudo fazer para que seja criado no Porto um Instituto Superior de Órgão e Música Sacra onde sejam preparados os agentes da Música Sacra das Dioceses e paróquias de Portugal, já que, infelizmente, a Universidade Católica Portuguesa deixou desaparecer a promissora Escola das Artes (Órgão e Música Sacra).
Abençoe Deus, fonte inesgotável da Beleza, da Bondade e da Verdade, este luminoso evento, aqueles que o imaginaram e concretizaram, assim como quantos se façam terreno para que a semente possa germinar.
Porto, 16 de Setembro de 2021
P. António Ferreira dos Santos